quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

notas de uma partida

beijei o cachorro da vizinha e quis lhe dar amor. e pra declarar o meu adeus contratei um novo amor. chamei ele de meu bem, e disse que com ele agora estou. pra declarar meu abandono, encomendei algumas flores: hoje é o dia de seu sepultamento. essa voz que te acalmou se despede. recortei até poemas, mas não quero mais te ver. é um aviso à saudade, tomei ela com afeto. agradeço seus abraços. um compromisso faço eu, agora, com a vida. já tive raiva, laguei-a por aí... descobri que tem gosto amargo de pequi.
certa vez jurei por Deus que largaria isso de mão. perdi essa aposta e voltei pro seu colchão. outra vez eu prometi que tentaria esquecer, perdoaria você. mas de que adianta um médico bom pra quem quer morrer?
pra declarar minha partida, vou sem beijos, sem despedida.
vomimbora de você.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

besteiras listadas

te dou uma pista,
eu tenho uma lista:

contém coisas, contém cacos,
algumas fotos, poucos fatos.

Imagens e céus,
e cores umas
sangrando puramente
ao lado das outras.

as fotos da infância
retratos e lembrança.

como eu ando,
escrevo na luz
a leveza das formas.

(PEDRO COUTO)

domingo, 21 de dezembro de 2008

domingo é um dia inoportuno

essa história é sobre um sujeito falsário. mas não um falsário qualquer, esse tinha tato. as vezes falava bonito, todo cheio de espírito e opiniões sujas das bobeiras mais feias desde mundo. vivia dizendo coisas sobre o fim dos tempos, a falta de amor e a ausência que sentia de Deus. pelos outros, se contentava fartamente em ser odiado. e vire e mexe se trancafiava por dias no minúsculo apartamento com o Zé, seu vira-lata. é, acho mesmo que esse só podia ser seu destino; bem solitário e fadado a morrer sem dente, apenas com a companhia do único ser da sua mesma espécie que o agüentava. acho que por ser uma pessoa peculiarmente individualista, queria pra si só guardar todos os seus demônios. libertava-os vez ou outra nas entrelinhas de seus precários poemas. num instante ou outro buscava um motivo besta pra se sentir bem. mas era só. ainda sim, atrás de cada gesto bonito ou feio, se escondia ali seus demônios.
nos domingos ele abria a porta pra mim. nas muitas vezes que cheguei, ela estava escancarada. ele sabia que eu entraria, sempre fui mesmo incapaz de recusar as recompensas de minhas visitas e lhe daria de volta, afeto. e sem jogar-lhe na cara seu medo luxuoso dos inimigos depois daquela varanda. e me pedia sempre para calar-me quando eu, frustrada, tentava jogar-lhe pouco de esperança no flagelo que era seu coração. fazia um discurso enorme sobre como os sujeitos são solitários e todos nós estamos fadados a engasgar na própria gargalhada:
- "dizer que todo mundo é especial é uma bela forma de afirmar que ninguém é"
foi na última visita que o próprio, com cara de repúdio disse algo sobre o amor. me embalou com som de bandolins, velas e vinho barato. por calorosos dois dias e duas noites senti com ele a angústia daquele prédio. e foi em meus braços que seu coração parou. não sei se tanta dor, tanto medo, ou tanto nada de nada foi a causa. mas os médicos me asseguraram que era destino.